A DOUTRINA DA CRIAÇÃO E SUA IMPORTÂNCIA PARA UMA COSMOVISÃO CRISTÃ
Cremos que a maioria de nós está familiarizada com a ideia de cosmovisão. Essa concepção tem sido muito divulgada no âmbito evangélico brasileiro, embora não seja originalmente uma ideia cristã. A representação de cosmovisão nasceu na filosofia durante o século XVIII, especificamente na filosofia alemã. Ela nos ensina a respeito da maneira como nós funcionamos no mundo e o nosso desafio de conhecê-lo.
A primeira expressão que esse conceito de cosmovisão nos ensina, é que nos relacionamos com o mundo na qualidade de intérpretes, não apenas experimentamos o mundo, mas também o interpretamos. E essa é uma das primeiras grandes ênfases do conceito de cosmovisão. Ele nasceu para nos dizer que somos intérpretes do mundo no qual vivemos. A segunda grande ênfase deste conceito é de que, nesse desafio de interpretar o mundo, funcionamos a partir de um conjunto de pressupostos fundamentais ou a partir de um conjunto de crenças a respeito de questões básicas sobre a vida. Ou seja, somos intérpretes do mundo e isso é condicionado por um conjunto de compromissos, de crenças que sustentamos a respeito de questões básicas sobre a vida.
Nesse ínterim, o conceito de cosmovisão, embora tenha nascido na filosofia, foi incorporando à teologia muito rapidamente, através do trabalho de dois grandes teólogos, o apologeta escocês James Orr e o estadista e teólogo holandês Abraham Kuyper. Esses estudiosos foram os responsáveis de alguma forma por trazerem para o contexto da teologia essa ideia de cosmovisão e talvez a pergunta seja: por que eles fizeram isso? Será que eles introduziram o conceito de cosmovisão na teologia só porque queriam surfar a última onda acadêmica do momento?
Tanto esses, quanto outros pensadores se apropriaram desse conceito porque entenderam que era de alguma forma útil para os cristãos contemporâneos no seu desafio de enfrentar os dilemas culturais do seu tempo e desde então, várias tentativas de articular a cosmovisão cristã, ou seja, de dizer quais seriam aqueles conceitos básicos, aquelas crenças básicas com as quais todo cristão deveria estar comprometido para interpretar o mundo de maneira adequada.
Várias tentativas têm sido feitas ao longo desses anos de maneiras muito diversas, mas elas têm um algo em comum: todas as tentativas de articular a cosmovisão cristã afirmam a importância do relato da Doutrina da Criação, ou seja, as tentativas de articular o que seria a cosmovisão cristã, sustentam que a verdade de que o mundo foi criado por Deus, tal qual descrito em Gênesis capítulos 1 e 2 tem um impacto significativo na maneira como um cristão entende o mundo, a vida e seu relacionamento com a realidade.
Vejamos o que Francis Schaeffer (2002) afirma:
O cristianismo não começa com a ordem “aceite a Cristo como seu Salvador”, ele começa com ‘No princípio criou Deus os céus e a Terra’ e somente a partir deste ponto estamos prontos para explicar a causa original de toda a perdição e a resposta para ela na morte de Cristo.
Essa afirmação é fabulosa, na tentativa de articular o evangelho, de definir o que é o evangelho, o que é a mensagem cristã. Muitas vezes cometemos um erro de imaginar que o evangelho começa na cruz. Na verdade, na cruz, o pecado precisa ser entendido à luz do relato da criação, porque a bíblia começa com a afirmação de que o mundo, a realidade na qual vivemos é criação de Deus. Partindo desta constatação, queremos propor aqui neste tópico uma reflexão sobre a importância do relato da Criação para a nossa cosmovisão cristã.
Começaremos com duas perguntas básicas: com que frequência o relato bíblico da Criação tem sido nosso objeto de reflexão? Você já parou para pensar sobre isso? A frequência com que nós abordamos esse assunto não é tão alta, ou seja, nossa aproximação de Gênesis 1 e 2 não é frequente em nossos círculos de debates ou de ensino. Isso tem se refletido ao longo da vida cristã e não nos referimos a algum estudo isolado, em alguma lição da Escola Dominical ou algum estudo esporádico relacionado a esse tema. Talvez, essa baixa frequência seja um indicador da falta de consciência da sua importância para nós.
A segunda pergunta é, quando o relato da Criação é o objeto de reflexão, qual tem sido a nossa preocupação pessoal em não apresentarmos uma apologética reducionista? Geralmente tendemos ao ler Gênesis 1 e 2 sempre no contexto da polêmica entre criacionismo e evolucionismo, como se Moisés estivesse escrito o texto de Gênesis há 150 anos atrás para rivalizar com as teorias de Charles Darwin em seu famigerado livro a Origem das Espécies. É obviamente um anacronismo histórico, porque enquanto a teoria da evolução tem 150 anos de existência, o relato bíblico da criação tem mais ou menos 3.400 anos.
Muitas vezes quando nos aproximamos de Gênesis 1, nos aproximamos como se fossem embates direto e muitas vezes o que não só nos atrai na abordagem é matar nossa curiosidade científica a respeito de algumas coisas, por exemplo; quantos anos tem a Terra, não é isso que às vezes perguntamos: a Terra é jovem ou velha? Ela tem alguns milhares de anos ou milhões e bilhões de anos? Os dias da criação são literais, dias de 24 horas ou são eras? Eles são dias sequenciais ou na verdade, pode haver um espaço entre um dia e outro?
Embora eles sejam literais e talvez a mais importante das curiosidades que às vezes queremos sanar com o texto é se a serpente passou a rastejar depois da queda e como afinal ela se locomovia antes do pecado? Será que ela voava, tinha patas e ela perdeu depois da queda? Claro que isso é uma ironia, mas que muitas vezes, nos aproximamos da passagem com uma abordagem apologética reducionista, apenas com o interesse de matar algumas curiosidades científicas.
Não estamos aqui desprezando ou ignorando o valor da apologética científica, pois sempre transitaremos no ambiente acadêmico e devemos respeitar o seu valor e o seu lugar, mas, também somos muito conscientes dos prejuízos causados pelo materialismo darwinista e, portanto, estamos muito conscientes da necessidade que temos de enfrentá-lo de maneira muito corajosa. Da mesma forma que não estamos ignorando o valor de investigar as coisas com o objetivo de matar a nossa curiosidade sobre o mundo, criado por Deus, isso também tem o seu valor.
Em Provérbios 25.2 diz: “A glória de Deus está nas coisas encobertas; mas a honra dos reis, está em descobri-las”, ou seja, do mesmo modo que um pai se deleita nas pequenas descobertas de um filho, Deus se alegra quando nós, seus filhos, descobrimos verdades a respeito das coisas que ele criou. Portanto, matar a nossa curiosidade a respeito do mundo criado por Deus também tem o seu lugar, contudo, frequentemente reduzimos a abordagem da criação a essas duas questões e quando fazemos isso perdemos de vistas a importância fundamental da narrativa da Criação para a cosmovisão cristã como um todo, isto é, deixamos de perceber como a afirmação de que Deus criou o Universo no qual vivemos é fundamental em termos de impacto na maneira de como interpretamos a realidade ao nosso redor e reagirmos ao mundo no qual estamos.
O propósito do texto de Gênesis, já citado, não é oferecer uma teoria científica sobre as origens, mas, estabelecer fundamentos, ou seja, fincar as estacas fundamentais da nossa maneira de enxergar a realidade que são determinantes, inclusive para a maneira como fazemos ciência. Então esse é objetivo de Gênesis 1 e 2 e talvez seja útil para afirmar isso na nossa mente, nos lembrar do contexto histórico, quando esse texto foi escrito.
Lembremo-nos que os hebreus ficaram cerca de 400 anos como escravos no Egito e durante todo seu tempo, o povo havia sido submetido a cosmogonias pagãs, ou seja, tentativas equivocadas de explicar as origens, a natureza e a finalidade do Cosmos, dentre as quais as mais importantes daquele período eram as cosmogonias egípcia e babilônica. O resultado disso é que por ocasião da libertação do cativeiro egípcio o povo teria um entendimento comprometido acerca dessas verdades fundamentais que seriam importantes, dentre outras, para que se estabelecesse como uma nação.
Esse foi o desejo de Deus, tirar o povo do Egito e levá-los para a terra prometida, a fim de que fosse uma nação de serviço ao Senhor, mas para que isso acontecesse, era necessário que tivesse uma compreensão adequada a respeito da sua origem, porque aquilo que queremos a respeito da nossa origem determina tudo aquilo que fazemos. O povo que saíra do cativeiro egípcio naquela ocasião, devido à sua formação nas cosmogonias egípcias e babilônicas, afirmava a existência de diversos deuses e um universo, em geral, compreendido como o resultado da ação desta multiplicidade de deuses.
Como já vimos em tópicos anteriores, em todas as cosmogonias antigas nunca é um deus só que cria o mundo, na verdade, tudo se origina sempre da tensão entre esses diferentes deuses, ou seja, de um conflito entre eles. Dois deuses começam a brigar e então como resultado do seu conflito o mundo, no caso da cosmogonia babilônica os dois deuses que brigam são Marduk e Tiamat, dois deuses relacionados às águas outro à terra que dão origem ao Universo através de um conflito. Nessa mesma cosmogonia, os homens são criados com o objetivo de dar descanso a um grupo de deuses de segunda categoria chamados de deuses caídos, para quem havia sobrado a tarefa de construir uma cidade que era a cidade da Babilônia, construir uma cidade é um trabalho pesado demais para um grupo de deuses.
É então que eles resolvem terceirizar essa tarefa de construir a cidade, e para isso, criam os homens para fazer um trabalho indigno que os deuses não queriam fazer. Agora pensemos juntos: que tipo de sociedade tenderia a surgir de uma cosmovisão que naturaliza o conflito, a ponto de dizer que o mundo surge de um conflito entre duas pessoas? Que tipo de sociedade não sairia daí ou que tipo de visão sobre a dignidade humana pode existir na ideia de que somos seres criados para fazer o trabalho desprezível que alguns deuses não queriam fazer? Não tem como resultar boa uma sociedade, que vai se estabelecer sob as estruturas fundamentais de que o conflito gera o mundo onde o homem é um ser criado para realizar uma tarefa indigna que os deuses não queriam realizar não tem como funcionar de maneira adequada. Então, Moisés escreve o relato da Criação com um objetivo principal, corrigir as crenças fundamentais do povo hebreu que está saindo do Egito depois de um longo tempo de exposição a tais cosmogonias pagãs, para dar a esse povo condições de enxergar a realidade de uma maneira adequada e permitir que o povo se organize enquanto uma sociedade, enquanto uma nação que servisse ao Senhor.
Precisamos entender e assumir isso para então nos aproximarmos dessa narrativa com as perguntas corretas sobre quais são as verdades fundamentais a respeito do mundo, sobre Deus e nós mesmos, as quais podemos aprender em Gênesis 1 e 2. A segunda pergunta fundamental é de como devemos nos aproximar do texto e que implicações tem o ensino de que vivemos no mundo criado por Deus para o qual descrito nessa passagem tem para a maneira como nós enxergamos o mundo e a vida? Gênesis 1 e 2 é como um texto que está descrevendo os pilares da nossa maneira de enxergar a realidade e está de alguma forma construindo os fundamentos que vão sustentar aquilo que nós vamos dizer a respeito da maneira como enxergaremos o mundo.
Um dos ensinos centrais da doutrina da Criação é que Deus criou todas as coisas por meio da sua Palavra. Existe uma fórmula criacional, ou seja, todas as coisas que são criadas no capítulo primeiro de Gênesis, são criadas através da expressão “e disse Deus”. Em geral, nossa tendência na interpretação dessa expressão é nos aproximamos na busca de uma teoria científica como se essa expressão fosse uma descrição científica da maneira como as coisas foram criadas, ou seja, por meio de fonemas que foram pronunciados por Deus e então usamos essa verdade que extraímos do texto para de alguma forma apontar a veracidade do fixismo em contraste com o evolucionismo ou seja, pegamos a expressão “e disse Deus”, afirmando que, falando, Deus trouxe a realidade à existência e percebemos que cada uma das coisas em Gênesis 1 é criada de acordo com a sua espécie, portanto esse ensino contraria a teoria da evolução.
Cremos que as espécies são fixas e que a evolução, a macroevolução, ou seja, a evolução de uma espécie para outra, não é possível, mas a pergunta é: seria esse o melhor manejo do texto? Ou seja, quando Moisés escreveu o relato da Criação e enfatizou que o mundo foi criado por Deus através da sua Palavra, o que ele queria nos ensinar é que Deus criou o mundo através da pronúncia de simples fonemas? A resposta é, NÃO!
O ensino de Moisés ao enfatizar isso, tem mais a ver com o agente criacional direto, ou seja, quando diz que Deus criou todas as coisas por meio da sua Palavra, é que seu filho Jesus Cristo é a pessoa por meio de quem Deus trouxe todas a realidade à existência. Isso não fica claro obviamente em Gênesis 1, mas descobrimos isso quando chegamos no evangelho conforme João e lemos o prólogo desse evangelho. Encontramos uma identificação imediata entre a palavra de Gênesis 1 e a pessoa de Jesus Cristo.
João abre o seu relato dizendo:
No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. Ele estava no princípio com Deus. Todas as coisas foram feitas por ele, e sem ele nada do que foi feito se fez. E o Verbo se fez carne, e habitou entre nós, e vimos a sua glória, como a glória do unigênito do Pai, cheio de graça e de verdade. João 1:1-3,14.
Quando Moisés, portanto, usa esta fórmula criacional “e disse Deus”, ensina-nos que Deus criou todas as coisas pelo poder da sua Palavra e que Jesus Cristo é o agente criacional direto, ou seja, foi por meio de seu filho que todas as coisas vieram à existência e a pergunta talvez seja quais seriam as implicações disso? Será que a principal implicação, a mais básica implicação de que o mundo foi criado pela Palavra de Deus é de que as espécies animais são fixas e não evoluem? Ainda que muitos concordem com esse postulado científico, precisamos dizer mais uma vez que não é esse o ensino fundamental desta passagem. Há muitas implicações fundamentais, mas destacaremos apenas uma e que se relaciona com a natureza da realidade na qual vivemos. Tem a ver com a ontologia, para você que gosta de filosofia, com a teoria da realidade.
Quando a Bíblia diz que Jesus é a palavra, obviamente que está usando uma analogia e que Jesus não é simplesmente um vocábulo, uma unidade linguística, Jesus é uma pessoa. Quando João diz que Jesus é a palavra, está obviamente usando uma figura, usando uma analogia, a pergunta que devemos fazer é: o que essa analogia nos comunica? A palavra tem a ver com o significado, é através de palavras que definimos as coisas e que dizemos o que são e o que não são. Palavras têm relação com isso, com o sentido das coisas, com o significado das coisas.
Portanto, uma das implicações da afirmação de que Deus criou todas as coisas pelo poder da sua Palavra é que elas não foram criadas vazias de significado como ensinam as correntes filosóficas contemporâneas mais populares, segundo as quais, o homem é quem atribui significado às coisas, o homem é que diz, qual é o sentido das coisas. Quando Moisés diz que Deus criou todas as coisas, está dizendo que as coisas foram significadas por Jesus, na ocasião do ato criador, razão pela qual o apóstolo Paulo vai dizer posteriormente, escrevendo aos colossenses que “nele estão escondidos todos os tesouros da sabedoria e todos os tesouros do conhecimento” (Colossenses 2.3). Ele diz isso a respeito de Jesus, que o sentindo da realidade é encontrado na pessoa de Cristo, porque ele é o criador da realidade, é aquele que atribui o significado das coisas, quando as traz à existência.
Quando as coisas têm significados ou recebem significado à posteriori atribuídos pelo homem, isso é inconsistente, incoerente. Não se pode sustentar a Doutrina da Criação e uma perspectiva antirrealista sobre a realidade ao mesmo tempo, e sim, foram criadas com significado, foram criadas com sentido e o texto demonstra de maneira belíssima que Deus tinha total controle sobre o processo de significação. Em Gênesis 2.3 o texto diz: “E disse Deus: Haja luz; e houve luz”, este é um versículo que ensina algo absolutamente profundo sobre a natureza da realidade, na qual vivemos, sob o controle exercido por Deus, sobre o processo que a trouxe à existência.
O que esse versículo está ensinando é que Jesus chama as coisas pelo nome antes delas existirem e quando as coisas vêm à existência, vêm exatamente do jeito que ele a significou. Ele tem todo o controle antes de nada existir, ele chama pelo nome, com significado e quando esse algo venha à existência, não vem diferente em nada daquilo que Jesus idealizou que fosse, vem a ser exatamente como ele “disse” que seria! A filosofia chama isso de realismo ontológico ou realismo metafísico.
A ideia de que vivemos em um mundo onde as coisas têm existência real e a ideia de que existem na realidade possuem significados imutáveis, que são independentes de nós, é uma implicação da Doutrina da Criação. Como cristãos, quando dizemos que Deus criou o mundo pelo poder da sua Palavra, o que dizemos é que eu sou metafisicamente um realista, ontologicamente um realista.
Boa parte das pessoas, mesmo as mais céticas, não teria nenhuma dificuldade com essa afirmação enquanto ela está sendo feita sobre o mundo natural, ou seja, ninguém teria muita dificuldade em acreditar que uma pedra, uma árvore, um cachorro têm significados pré-determinados e são exatamente aquilo que Deus disse que eles seriam. O problema começa quando isso é afirmado sobre o homem e quando isso é afirmado sobre a cultura. Geralmente as pessoas não têm dificuldade quanto ao universo da natureza, mas quanto ao homem e à cultura sim, porque isso, de alguma forma, afronta à suposta autonomia que os homens querem garantir sobre a sua identidade e sobre o seu labor nessa realidade na qual eles vivem.
As pessoas admitem que se diga que o cachorro é um cachorro e não pode mudar, uma árvore é uma árvore e não pode mudar, uma pedra é uma pedra e não pode mudar, pois o significado antecede à existência delas. Mas, como diria um existencialista: o homem é um ser no qual a existência precede a essência, no caso do universo natural, a essência pode preceder a existência, porém, no caso do homem e da cultura, dizem os existencialistas, a existência precede a essência, ou seja, primeiro você existe e depois você se constrói, isso é o que os existencialistas costumam dizer, atribuem significado a si mesmos.
Mas, atentemos para a Doutrina da Criação: ela não permite, nesse particular essa distinção entre a natureza e cultura, porque ela não diz apenas que os elementos da natureza foram criados pela Palavra de Deus. Observemos como é que o homem é criado em Gênesis 1.26-28:
E disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança; e domine sobre os peixes do mar, e sobre as aves dos céus, e sobre o gado, e sobre toda a terra, e sobre todo o réptil que se move sobre a terra. E criou Deus o homem à sua imagem; à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou. E Deus os abençoou, e Deus lhes disse: Frutificai e multiplicai-vos, e enchei a terra, e sujeitai-a; e dominai sobre os peixes do mar e sobre as aves dos céus, e sobre todo o animal que se move sobre a terra.
Observemos que a mesma expressão criacional, ou seja, através da qual todas as outras coisas são criadas, “…e disse Deus”, é a mesma palavra que disse que uma pedra é uma pedra, um leão é um leão e uma árvore uma árvore. Trouxe à existência o homem e atribuiu significado a ele, [“…façamos o homem à nossa imagem” …] Portanto, o homem assim como todas as outras coisas, têm um significado prévio e não desfruta de plena autonomia na construção da sua identidade.
Algo diferente à luz da perspectiva de Gênesis 1 é inconsistente e Gênesis 2.18 vai nos ensinar que aquilo que é dito sobre o homem pode ser dito acerca da cultura. Referimo-nos aqui ao versículo que abre o trecho da criação da mulher, no qual lemos: “disse mais o Senhor Deus: não é bom que o homem esteja só far-lhe-ei uma auxiliadora que lhe seja idônea”, a expressão chave aqui é “não é bom que o homem esteja só”. Como é que geralmente interpretamos essa expressão? Como se ela fosse uma constatação, ou seja, como se depois de ter criado o mundo, Deus tivesse sido pego de surpresa e percebido a falta de algo e então resolveu criar aquilo que estava faltando. Numa leitura rápida do texto parece que é isso mesmo, mas preste atenção! Além dessa ideia de um Deus pego de surpresa não ser teologicamente muito aceitável, o texto é iniciado com a fórmula criacional, a mesma fórmula em Gênesis 1: “e disse Deus”. E quando chegamos em Gênesis 2.18, lemos: “disse mais o Senhor Deus”. O que essa expressão está dizendo é, o que vem agora não é uma constatação, e sim, mais um ato criativo de Deus.
São as palavras que Gênesis usa para falar da criação na dimensão social de existência, dimensão essa que ele irá regulamentar no final desta passagem, ensinando agora que, esta nova dimensão de existência, existe e qual será além de funcionamento desta sociedade, desta nova dimensão de existência: “deixará o homem o seu pai sua mãe se unirá à sua mulher, tornando-se em uma só carne”.
Sempre dizemos que a família é a célula mater da sociedade, mas de onde tiramos isso? Tiramos da verdadeira regulamentação, dessa dimensão de existência criada por Deus que é a dimensão social.
Deus determinou que ela funcionaria através desta instituição fundamental e é por isso que cristãos não podem aceitar modelos diferentes de família, é por isso que cristãos afirmam que família não é uma questão que o estado moderno pode decidir o que vai ser ou o que não vai ser, porque a estrutura da instituição familiar está calcada na atividade criacional de Deus através da sua Palavra.
Vivemos numa realidade onde as coisas possuem significado previamente estabelecido e isso não é uma verdade exclusiva para o universo natural. Isso inclui, embora com algumas distinções, o homem e o universo da cultura. Aquilo que o homem faz: arte, política, economia, sociedade, cada uma dessas coisas tem a sua estrutura fincada na atividade criacional de Deus. Qual o benefício disso? Por que seria importante fazer essa análise para extrair essas verdades da passagem de Gênesis 1 e 2?
Acreditamos que a percepção deste ensino traz primeiro um benefício apologético para cada um de nós. Enfrentamos uma série de inimigos contemporaneamente, por exemplo o relativismo epistemológico, que é a ideia de que não existe verdade, de que a verdade muda de acordo com a época, a cultura. Vivemos por exemplo, no tempo do subjetivismo ético, onde as pessoas dizem que não existem valores morais absolutos e que moralidade é uma questão que varia de indivíduo para indivíduo, de cultura para cultura. Vivemos na época da ideologia de gênero, em que as pessoas podem dizer que gênero é meramente uma construção subjetiva e social.
Percebe-se que a ontologia, a qual está por trás de todas essas coisas é um antirrealismo, ou seja, a ideia de que o mundo não tem significado prévio e quem estabelece o significado para as coisas do mundo é o próprio homem, ou seja, somos dependentes do antirrealismo antológico e quando olhamos para o texto da criação já está lá, com esse pressuposto sendo combatido.
Um cristão convicto dessa implicação da cosmovisão cristã tende a ser muito menos suscetível ao que acabamos de mencionar ou pelo menos ele se sentirá mais desconfortável para tentar harmonizar qualquer uma delas com o cristianismo, se estiver consciente do que diz a doutrina da criação terá muita dificuldade de tentar harmonizar o relativismo epistemológico, o subjetivismo moral, a ideologia de gênero, com o cristianismo e isso porque há um pressuposto antológico que é contraditório entre essas duas coisas.
Mas talvez, possamos mencionar também, um benefício espiritual, sabendo que há uma tensão entre o pensamento cristão e o pensamento não cristão: o primeiro aceita a sua condição de criatura, então ele quer pensar debaixo da estrutura da criação de Deus, já o segundo rejeita a sua condição de criatura, ele quer ser Deus, quer atribuir significado às coisas como Deus fez quando as trouxe à existência.
Essa tensão é, muitas vezes, parte da nossa experiência individual, pois o que é o pecado senão nossa tentativa de rejeitar a condição de criaturas para tentarmos afirmar diante de Deus, uma suposta condição de criadores? Lembremo-nos da primeira tentação: “…e sereis como Deus…” (Gn 3.5).
Quanto mais cedo aprendemos a lição de que só existe um mundo real, no qual, Deus é o criador e nós suas criaturas, maior será nossa chance de termos uma vida espiritual saudável e de encontrar a nossa própria realização no mundo em que vivemos. É por isso que, muitas vezes, não encontramos satisfação alguma em nossa vida. Queremos viver em um mundo que não existe, onde somos deuses de nossas vidas, onde queremos atribuir significados às coisas diferentes daqueles que Deus atribuiu, por isso precisamos ter consciência dessa implicação.
Portanto, só existe um mundo real e a única forma de voltarmos para essa realidade ou nos submetermos a ele é por meio da fé em Jesus Cristo e o quanto antes isso aconteça, teremos mais chances de desfrutarmos de uma vida espiritual satisfatória.
Precisamos redescobrir a Doutrina da Criação, precisamos redescobrir a amplitude, a abrangência das verdades que são ensinadas em Gênesis 1 e 2 para o nosso bem, para o bem do progresso da igreja de Jesus Cristo. Mas, sobretudo, para que o nome do nosso Senhor seja glorificado e que ele nos ajude a fazer isso, pela sua infinita misericórdia.